quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O ódio à democracia

Este ano eleitoral com eleitores tão acalorados, cheios de mensagens de ódio e boatos de toda sorte, e com uma imprensa que ajuda pouco para esclarecer à população, fiquei ainda mais interessado em Política. Mas um livro me chamou a atenção pelo seu título forte: "O ódio à democracia" (La haine de la démocratie, 2005), do filósofo francês Jacques Rancière, publicado este ano no Brasil pela Boitempo Editorial.

Estou longe de ser crítico literário e mais longe ainda de ser cientista político, mas vou dividir com a Internet (melhor admitir que ninguém lê esse blog mesmo... rs) algumas coisas que achei interessante.

Por exemplo, eu não imaginava que em meados do século XIX, o Manifesto Comunista (de Karl Max e Friedrich Engels) já acusava a mercantilização generalizada dos relacionamentos, quando todas as práticas profissionais tendem a se banalizar, perdendo seu horizonte político ou metafísico, transformando-se em mera relação contratual. Citemos como exemplo o profissionais mais sagrados e satanizados do Brasil: Os médicos e os professores. Quantos médicos e professores se sentem apenas meros prestadores de serviço? Quantos médicos e professores sentem sua profissão como uma missão especial para a Humanidade?

Eis o que diz o Manifesto: [a burguesia] afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio. [Ela] despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas como dignas e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio seus servidores assalariados.

Um dos inúmeros problemas da educação nas escolas - a relação corpo docente x corpo discente, por estranho que pareça, tem a ver com a igualdade democrática: Não há mais lugar para nenhum tipo de transcendência, é o indivíduo que é erigido em valor absoluto e, se alguma coisa de sagrado persiste, é ainda a santificação do indivíduo, por meio dos direitos humanos e da democracia [...] Eis, portanto, por que a autoridade do professor está arruinada: por essa polarização da igualdade, ele não é mais do que um trabalhador comum, que se encontra diante de usuários e é levado a discutir de igual para igual com o aluno, que acaba por se instalar como juiz de seu mestre.

A democracia é tão perturbadora da ordem que até os animais ganharam o status de serem vistos como iguais. Quase todos os desenhos animados hoje defendem o direito deles e o movimento vegano parece estar ganhando força. Leiam esta pérola: A democracia é propriamente a inversão de todas as relações que estruturam a sociedade humana: os governantes parecem governados e os governados, governantes; as mulheres são iguais aos homens; o pai se habitua a tratar o filho de igual para igual; o meteco e o estrangeiro tornam-se iguais ao cidadão; o professor teme e bajula alunos que, de sua parte, zombam dele; os jovens se igualam aos velhos e os velhos imitam os jovens; os próprios animais são livres e os cavalos e os burros, conscientes de sua liberdade e dignidade, atropelam aqueles que não lhes dão passagem na rua.

Sobre a "dominação capitalista mundial" e a "tirania do consumo", o autor responsabiliza os
próprios indivíduos: Os indivíduos não são vítimas de um sistema global de dominação, mas os responsáveis por esses sistemas; são eles que fazem reinar a "tirania democrática" do consumo. As leis de crescimento do capital, o tipo de produção e circulação de mercadorias que elas comandam, tornaram-se simples consequência dos vícios daqueles que as consomem e, em particular, daqueles que têm menos meios de consumir. A lei do lucro capitalista reina sobre o mundo porque o homem democrático é um ser de desmedida, devorador insaciável de mercadorias, direitos humanos e espetáculos televisivos.



De fato, também discordo dessas ideologias que põem a culpa dos nossos males sobre o sistema. Quem faz o sistema somos nós, os vícios do sistema são alimentados por nossos próprios vícios. Precisamos aprimorar a nós mesmos para aprimorar a democracia. Acredito que o verdadeiro socialismo não consiste em partilhar bens materiais. Cada um deve ter a liberdade de viver como quiser e puder. O socialismo que acredito consiste em partilhar conhecimento e sabedoria, sem imposições. Já dizia Jesus: A verdade liberta.

Por isso cito as últimas linhas do livro: A coisa tem por que suscitar medo e, portanto, ódio, entre os que estão acostumados a exercer o magistério do pensamento. Mas, entre os que sabem partilhar com qualquer um o poder igual da inteligência, pode suscitar, ao contrário, coragem e, portanto, felicidade.